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Matheus Alexandre | Saravá Shalom, um exercicio de memoria

July 28, 2025
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Inspirado na pesquisa visual pioneira da fotógrafa Elaine Eiger e da jornalista Luize Valente, apresentada no documentário “A Estrela Oculta do Sertão” (2005), o pesquisador visual Alex Minkin formula, duas décadas depois, uma nova narrativa poética sobre os cruzamentos entre diásporas e ancestralidades que concorrem na fundação do nosso complexo território político e cultural. Seu documentário “Saravá Shalom” (dir. Alex Minkin, 2025), fruto de três anos de filmagens sem apoio institucional, estreia com grande acolhida na prestigiada Fundação Joaquim Nabuco, no Recife, com debate inaugural conduzido pelo consagrado escritor Ronaldo Correia de Brito — ele próprio um pensador do Sertão profundo.

Também é fundacional à reflexão proposta por Minkin a tese de doutorado defendida por Andrea Kogan em 2016, na PUC-SP, intitulada “Vivência espiritual judaica na metrópole paulistana: judeus-espíritas na contemporaneidade“. Ao investigar a presença de judeus em círculos kardecistas e mediúnicos, Kogan nos apresenta um retrato profundo da diversidade de espaços e vivências judaicas na atualidade brasileira.

Mais do que relatar a persistência de uma ancestralidade, “Saravá Shalom” nos oferece um inventário cultural singular. Trata-se de uma obra rara, que amplia nossos horizontes sobre a identidade e o pertencimento — e, ao fazê-lo, nos convoca a uma escuta mais atenta e sensível da história brasileira.

Abaixo, o texto completo de Matheus Alexandre apresentado na pré-exibição do filme na Universidade de Fortaleza, em 8 de maio de 2025. A versão resumida deste texto foi publicada no jornal O Povo, em 6 de junho de 2025.

“Tetelestái.”

A palavra ecoa em grego antigo — forma verbal no pretérito perfeito indicativo do verbo teleó (τελέω), que significa cumprir, concluir, finalizar. Traduzida, carrega o peso da consumação: “está feito”, “está concluído”, “está consumado”.

Teólogos cristãos afirmam que foi com essa palavra que Yehoshua, o judeu que a história ocidental consagrou como Jesus, entregou sua vida, supliciado pelos romanos, no instante derradeiro de sua agonia. Era o fim e, ao mesmo tempo, o anúncio de um novo ciclo — o encerramento de uma jornada e o prenúncio de outra.

Tetelestái. Está feito.

Repito essa palavra para apresentar esta obra audiovisual que se propõe a revisitar a história do Brasil — não para celebrá-la passivamente, mas para interrogá-la. Uma obra que atravessa o tempo e busca rasgar o véu de mitos fundadores cristalizados desde os primeiros anos da República, quando um grupo de intelectuais se encarregou de narrar a nação que surgia do fim do Império.

Matheus Alexandre

Foram homens como Adolfo de Varnhagen, Silvio Romero, Nina Rodrigues, Oliveira Viana, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e tantos outros que, em diferentes matizes e perspectivas, ajudaram a fixar a ideia de um Brasil definido pelo encontro de três matrizes culturais: a indígena, a africana e a europeia portuguesa. Da mestiçagem entre elas, dizia-se, teria nascido a alma nacional — uma visão que, embora revestida de tom integrador, ocultava as hierarquias, violências e exclusões que atravessaram a formação social do país.

Essa concepção vigorou durante décadas, ganhando status de senso comum. Mas, a partir da década de 1950, começou a ser profundamente questionada. Foi então que Anita Novinsky, historiadora brasileira e judia, rompeu o silêncio sobre um capítulo soterrado da nossa formação.

Anita Novinsky e Luciano Oliveira no “A Estrela Oculta do Sertão” (2005, d Luize Valente e Elaine Eiger)

Ao acessar os arquivos da Inquisição Portuguesa, preservados no Arquivo Nacional da Torre do Tombo — documentos que por séculos permaneceram fora do alcance da historiografia brasileira e portuguesa, ocultos por rígidas restrições só suspensas na segunda metade do século XX — Novinsky revelou aquilo que o tempo, a censura e o preconceito haviam tentado apagar: a presença judaica como parte constitutiva e profundamente enraizada no tecido social do Brasil.

Em suas pesquisas, ela demonstrou que, embora o Tribunal do Santo Ofício estivesse sediado exclusivamente em Lisboa, Porto e Coimbra, sua influência atravessava o Atlântico com vigor. Nas colônias, seus agentes devassavam vidas, rastreavam suspeitos e determinavam seu envio para julgamento em Portugal. A intolerância religiosa não apenas cruzou oceanos — ela se transplantou para o Novo Mundo e ali vicejou, transformando o antijudaísmo europeu em um dos alicerces invisíveis da sociedade colonial.

André Feitosa na pré-estreia do filme

Mas a história, como bem observa Novinsky, começara antes. Suas raízes mergulham no solo amargo da expulsão e conversão forçada dos judeus sefarditas na Espanha, em 1492. A diáspora que se seguiu não foi apenas territorial, mas existencial. Era o que a historiadora chamava de “segundo exílio”: arrancados de sua terra natal, foram depois despojados de sua fé e integridade comunitária, convertidos à força a uma religião estranha. No Brasil, esses cristãos-novos — judeus convertidos sob pressão — reinventaram-se. Tornaram-se pioneiros da agricultura, artífices do comércio, médicos, cientistas e desbravadores do território. Fugindo da Inquisição ou tentando sobreviver após condenações, chegavam como refugiados, fugitivos e desterrados.

Aqui, entre as matas e o litoral, começaram a viver duplamente. No íntimo de suas casas, preservavam o que podiam de sua herança: tradições, preces, gestos sutis de memória. No espaço público, contudo, vestiam a máscara do catolicismo. Esse modo de vida ambíguo deu origem ao fenômeno conhecido como criptojudaísmo, responsável por infiltrar, quase imperceptivelmente, práticas judaicas no cotidiano brasileiro — práticas essas que, embora despojadas de seus significados originais, sobreviveram na cultura popular.

Um exemplo eloquente é a pulseira vermelha de Santa Luzia, tradicional no catolicismo nordestino como proteção contra o mau-olhado. Sua origem remonta à tradição judaica, especialmente à mística da cabala e ao judaísmo hassídico. A Bíblia conta que, ao nascerem Esaú e Jacó (Bereshit/Gênesis), a parteira amarrou um fio vermelho no punho de Esaú para marcar o primogênito. De geração em geração, entre lapsos de memória e resistência silenciosa, esse fio atravessou o oceano e se fixou no imaginário popular brasileiro.

Essas e outras tradições testemunham não apenas uma herança cultural discreta, mas também um gesto de resistência. No entanto, a presença judaica no Brasil não se restringiu ao disfarce e à sobrevivência íntima. Durante a ocupação holandesa no Nordeste, os judeus sefarditas viveram um raro período de tolerância. Em Recife, fundaram a primeira comunidade judaica organizada das Américas. Erigiram a sinagoga Kahal Zur Israel, criaram instituições próprias e desenvolveram uma vibrante vida religiosa e social. Esse capítulo breve, mas poderoso, foi também ponte para o mundo: expulsos com a queda do domínio holandês, muitos partiram para Nova Amsterdã — a futura Nova York — onde estabeleceram a primeira comunidade judaica dos Estados Unidos.

Contudo, mesmo após a conversão forçada e a assimilação aparente, os cristãos-novos seguiram marcados pela exclusão. Os temidos Estatutos de Pureza de Sangue os perseguiam implacavelmente. Embora formalmente batizados, eram vistos como “manchados” por sua origem. Estavam proibidos de ocupar cargos públicos, de entrar em universidades ou de participar de ordens religiosas. O que estava em jogo já não era apenas a fé — mas o sangue. Uma lógica racializante se impunha, transplantada para o Brasil colonial e escravocrata, onde se enraizou e perpetuou formas profundas de desigualdade. Como sublinhou Novinsky, a Inquisição não era apenas um instrumento religioso: era também um dispositivo de poder político e social, destinado a preservar hierarquias e a ordenar o mundo segundo uma rígida divisão entre “puros” e “impuros”.

A presença judaica no Brasil, portanto, não é um eco distante ou uma nota de rodapé. É um fio entrelaçado na própria tessitura da história nacional — um fio, por vezes invisível, mas resistente. Apesar das tentativas de apagamento e da repressão sistemática, os judeus deixaram marcas indeléveis na cultura, nas práticas sociais e no imaginário do país. Entre a resistência silenciosa e a afirmação identitária, seu legado permanece, desafiando o esquecimento e reivindicando seu lugar na narrativa do Brasil.

E é exatamente disso que trata o documentário dirigido por Alex Minkin.

Inspirado na pesquisa visual de Elaine Eiger e Luize Valente em A Estrela Oculta do Sertão (2005), o judeu e pesquisador Minkin parece propor, mais do que afirmar, uma inquietante pergunta: o que é o Brasil? Duas décadas depois daquela obra inaugural, ele constrói uma nova narrativa sobre cruzamentos entre diásporas e ancestralidades que se enredaram na formação do país. Seu documentário, Saravá Shalom (2025), filmado ao longo de três anos e sem qualquer apoio institucional, não busca respostas fáceis. Pelo contrário: aposta na força da interrogação sensível como método e epistemologia para romper silêncios históricos e dar corpo à pluralidade das experiências judaicas no Brasil.

Mais do que indagar sobre o país, Minkin acaba também provocando uma reflexão que me atravessa enquanto judeu: o que é ser judeu? Onde e como a tradição judaica se entrelaça às tradições negras e indígenas que compõem o mosaico brasileiro? O Brasil se ergueu — e ainda se ergue — como uma grande encruzilhada, um ponto de encontro de memórias e legados diversos. E há, entre essas tradições, algo que pulsa em comum: a centralidade da ancestralidade.

No candomblé, dança-se em sentido anti-horário, reverenciando o passado e honrando o tempo como memória viva. Os orixás são homens e mulheres ancestrais divinizados, forças que atravessam as gerações e permanecem presentes. No judaísmo, também não há identidade sem ancestralidade. Somos, enquanto povo, porque uma aliança nos une aos nossos antepassados. Carregamos em cada prece a lembrança de Avraham e Sara, Itzhak e Rivka, Yaakov, Rachel e Lea. Não há rito ou celebração que não convoque essas presenças — somos porque eles foram. O judaísmo, em sua essência, é um exercício de memória.

No candomblé, dança-se em sentido anti-horário, reverenciando o passado e honrando o tempo como memória viva. Os orixás são homens e mulheres ancestrais divinizados, forças que atravessam as gerações e permanecem presentes. No judaísmo, também não há identidade sem ancestralidade. O judaísmo, em sua essência, é um exercício de memória.

Nas tradições indígenas, essa lógica é ainda mais visceral. Identidade, ancestralidade e territorialidade não são dimensões distintas — são a própria substância do existir. O território não é um pano de fundo, mas o corpo da comunidade, o espaço onde o tempo se materializa e a memória se faz presente. É por isso que os povos indígenas brasileiros lutam hoje contra o chamado Marco Temporal: mais do que terra, reivindicam o direito de existir plenamente, em continuidade com seus antepassados e com o mundo que lhes foi legado.

No judaísmo, essa compreensão está inscrita na própria essência da tradição. Nosso calendário é como um museu vivo: cada festividade é uma exposição que narra um capítulo da nossa história, mantendo viva a memória dos ancestrais e conectando-a às novas gerações. Nossas celebrações seguem o compasso das estações em nossa terra ancestral, traduzindo o ciclo natural em ritual e significado. Nossas preces se elevam voltadas para Jerusalém. Nossas sinagogas, erguidas em todas as partes do mundo, orientam-se em direção à cidade sagrada. Assim reafirmamos, dia após dia, que tempo, espaço e memória não são abstrações — são, juntos, os pilares que, sustentado no território, sustentam a experiência judaica e nos mantêm vinculados a quem fomos, a quem somos e ao lugar de onde viemos.

Afirmar e lembrar isso — que o povo judeu é, antes de tudo, um povo indígena, vinculado à sua terra por um pacto milenar que antecede e desafia as categorias modernas — é um gesto de extrema importância, especialmente em tempos marcados pela ascensão do antissemitismo. Um antissemitismo que, renovado em suas formas, busca negar ao judeu não apenas seu lugar na história, mas também sua relação originária com o território.

Nosso vínculo com Eretz Yisrael não é uma construção colonial ou um artifício moderno. É parte constitutiva de nossa identidade, tão antiga quanto os nomes de Avraham, Sara, Itzhak, Rivka, Yaakov, Rachel e Lea, cujas histórias moldam até hoje a alma do nosso povo. Desconectar os judeus de sua terra ancestral é, portanto, mais do que um ato político: é uma violência simbólica e existencial que ecoa a velha tentativa de apagar o que somos.

Em todas essas tradições — judaica, africana e indígena — há um fio que as costura: a recusa em esquecer. A consciência de que o presente só se sustenta porque está enraizado no que veio antes. O corpo é território. A memória é território. E é esse entrelaçamento que o documentário de Alex Minkin, em sua delicadeza e profundidade, busca iluminar: um Brasil que é encruzilhada, herança e permanência.

Em todas essas tradições — judaica, africana e indígena — há um fio que as costura: a recusa em esquecer.

Cena da cerimônia judaica de Candomblé em Saravá Shalom

Ao indagar o que é o Brasil, Minkin desdobra a reflexão e pergunta, igualmente, o que é ser judeu — e a quem pertence o direito de definir essa condição. Seu documentário ilumina as múltiplas experiências da judeidade no país, vividas em diferentes corpos, geografias e histórias familiares. Uma judeidade que não se resume a um arquétipo único ou a uma origem homogênea, mas que se manifesta em trajetórias diversas: judeus sefaradim e ashkenazim, laicos e religiosos, assimilados e visíveis, judeus nordestinos e judeus do sul, judeus de ascendência indígena e negra, todos compondo um mosaico de presenças que o antissemitismo insiste em obscurecer.

Negar essa diversidade é parte do próprio projeto antissemita, que procura transformar o judeu em uma figura rígida e desumanizada, esvaziada de complexidade e desvinculada da história real de seus encontros e desencontros culturais. Apagar as múltiplas formas de ser judeu no Brasil — suas resistências, suas fusões, suas marcas na língua, na culinária, na música e nas formas cotidianas de viver e celebrar — é mais do que silenciar. É tentar invalidar a própria legitimidade dessa presença rica e histórica, comprimindo o “ser judeu” em um molde estreito e artificial, incapaz de conter suas expressões, experiências e contradições.

“Qual é a minha judeidade?”, pergunto a mim mesmo. Judeu por sangue e por escolha, sou filho dos que, expulsos da Espanha, buscaram refúgio em Portugal. Expulsos de Portugal, seguiram para o Marrocos onde aprenderam árabe e hakitia, e para os Países Baixos onde aprenderam o Holandês, até que, por fim, lançaram raízes no Brasil. Em Israel, sou Noach ben Aharon veAvigail. Em terras iorubás, sou Ọmọ Ọṣọ́lúfọ́n Babá Abiyọyé. Parafraseando Sojourner Truth: e eu não sou um judeu?

Em Israel, sou Noach ben Aharon veAvigail. Em terras iorubás, sou Ọmọ Ọṣọ́lúfọ́n Babá Abiyọyé. Parafraseando Sojourner Truth: e eu não sou um judeu?

Tetelestái.

Sim, está feito. Mas as bases sobre as quais as ciências sociais e históricas interpretaram o Brasil estão, agora, implodidas. A obra de Minkin desmonta verdades que, embora apresentadas como sólidas, sempre foram — como a própria ciência admite — provisórias e frágeis diante da complexidade do real. A realidade, afinal, resiste a ser plenamente capturada por nossas categorias limitadas.

Por isso, é uma obra incômoda. Incomoda porque nos desestabiliza, porque desmonta certezas, porque nos obriga a repensar quem somos e a encarar, sem subterfúgios, a pergunta fundamental: o que é o Brasil?

Chegou o momento de refazer, de recontar e de redescobrir as camadas soterradas daquilo que, por hábito ou conveniência, chamamos de Brasil.

Chegou o momento de refazer, de recontar e de redescobrir as camadas soterradas daquilo que, por hábito ou conveniência, chamamos de Brasil.

Oseh shalom bimromav / Hu ya’aseh shalom aleinu / V’al kol Yisrael / V’al kol yoshvei tevel / Ve’imru: Amen

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